Em 1918, Monteiro Lobato publicou Urupês, seu primeiro livro de sucesso, que o colocou na vanguarda da literatura brasileira. A obra foi revolucionária não apenas por revelar o talento do escritor, mas também por ter sido a primeira publicação a romper com um padrão no mercado nacional de capas puramente tipográficas, segundo senso comum de estudiosos do assunto. O autor nascido em Taubaté, interior de São Paulo, fundou na época sua própria editora, a Monteiro Lobato & Cia, e contratou o artista plástico Wasth Rodrigues para ilustrar a capa daquele título, sendo apontado, a partir de então, como o primeiro editor do país a entendê-la como suporte de atração comercial estratégico nas livrarias.

A iniciativa era profética. Como em todo o mundo, o Brasil aperfeiçoou a cultura do olhar com a expansão da indústria de produção em massa e o crescimento dos centros urbanos ao longo do século passado. No imensurável acervo das atuais livrarias – e em um país onde o hábito da leitura ainda é pequeno –, cabe à imagem a garantia de um canal de comunicação direto, que se destaque nas vitrines. “Hoje, capa no Brasil é, em certas ocasiões, mais importante do que o livro”, exagera o coordenador editorial da Globo, Joacir Furtado.

Tendo isso em mente, as editoras investem mais em novas possibilidades. O avanço da tecnologia proporciona criações diferentes e cada vez mais audaciosas, produzidas com materiais pouco convencionais, combinações de fotografias e texturas que fogem do comum. O designer tem hoje liberdade para abranger todo o conhecimento prático-teórico disponível sobre estéticas para a confecção da capa. O grande trunfo é dar ao livro um valor simbólico similar ao do objeto de arte ou suscitar o desejo de possuí-lo logo à primeira vista, conferindo-lhe a impressão de exclusividade. “A sofisticação gráfica feita por designers e artistas agrega valor ao livro e proporciona um retorno comercial que supera as expectativas da editora”, garante o editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz. Para o gerente do departamento de design da editora Record, Leonardo Iaccarino, a capa tem o poder de chamar um público já existente e o de construir um novo para determinados títulos. “Por questões mercadológicas, é uma importante ferramenta, podendo inclusive, ser utilizada de forma manipuladora.”

CATEGORIAS
De acordo com Furtado, o mercado editorial divide títulos por categorias segmentadas de consumidores com propósitos de compra bem esclarecidos. Apesar de não existir uma regra geral ou uma pesquisa de perfil de consumidor, é fácil perceber três grupos. O primeiro é formado por um público menos exigente, que vê no livro uma ferramenta funcional, como estudantes, que priorizam o conteúdo acima de qualquer elemento ilustrativo, pois costumam ler para provas ou vestibulares. Daí a razão de edições de obras clássicas como Senhora, de José de Alencar, serem, geralmente, elaboradas de maneira mais áfico.

O segundo é a classe média, que compõe relevante fatia dos novos consumidores dos chamados “produtos culturais” e costumam ver os livros como item de grande valor de troca, ideal para presentear os amigos. E por último – e em minoria – está a parcela dos apaixonados por determinados autores, que não hesita em adquirir diversas versões da mesma obra somente por conta de diferenciais gráficos. O alvo de um livro de requintado trabalho gráfico é voltado, principalmente, para esses dois últimos grupos. “Conceituamos o projeto em termos editoriais e formulamos uma estratégia de colocação no mercado pensando no público que pretendemos atingir com esse lançamento”, explica Iaccarino.

VIDAS SECAS
O processo até a decisão sobre o que será novidade ou recolocado editorialmente é múltiplo e não está restrito às pesquisas de marketing. As editoras podem tanto investir em grandes projetos gráficos para edições comemorativas de aniversário de obras e escritores consagrados – fórmula certeira para revitalizar o catálogo – como em relançar toda a coleção de um autor.

Vidas secas, de Graciliano Ramos, por exemplo, ganhou da Record nova roupagem no ano passado em razão dos 70 anos de sua primeira publicação, em 1938. A edição foi redimensionada, com formato acima do usual e uma sobrecapa adicional, que encobre o livro. Para ilustrar o tom seco e áspero do sertão descrito no romance, o fotógrafo Evandro Teixeira produziu imagens exclusivas de Alagoas e Pernambuco. Também pela editora, Graciliano teve toda a sua obra reformulada graficamente pela designer e fundadora do escritório eg.design, Evelyn Grumach.

Ao renovar os títulos do autor alagoano a partir de 1997, Evelyn optou por três tipografias diferentes para grafar o nome Graciliano, de traços rígidos e concisos, com letras garrafais e em alto relevo. “A escrita dele é contundente, precisa, e assimilei isso à sua assinatura”, explica. A ideia era cristalizar a aridez que o escritor faz uso como forma de denunciar a miséria do sertão Nordestino. Evelyn buscou esse sentimento em desenhos e gravuras que remetessem ao cenário desolador da região. Elas pertenciam ao miolo da edição anterior, assinadas com ilustrações inéditas de nomes como Marcelo Grassman e Aldemir Martins. Mas a qualidade do papel original, já desgastado pelo tempo, era péssima e ela tinha de encontrar uma solução visual. Além disso, ainda havia uma restrição técnica imposta pela gráfica que imprimiria os volumes, e as imagens corriam sério risco de ficar ilegíveis. Graças ao leque de alternativas oferecidas pela tecnologia, bastou uma mudança de ângulo e o problema se transformou no mote da coleção: “Toda capa é composta por dois elementos-chaves que foram escaneados e receberam várias etapas de tratamento, sendo uma ilustração e um detalhe ampliado dela, para ressaltar suas texturas”.

Após o contratempo com as ilustrações, Evelyn se concentrou na definição das características que ficariam encarregadas de dar o tom à identificação dos volumes. Seguindo ainda pelo curso da secura de Graciliano, em cada um deles, o nome da obra é menor do que o do autor e um quadrilátero fica em segundo plano, logo atrás dos demais elementos, justamente para realçá-los. O restante do espaço é branco. “Cada livro tem uma cor e uma espécie de escala que mantenho”. Segundo ela, assimilar formas geométricas a texturas é um meio de nos transpor ao universo narrado. “Ele pode representar um pedaço do livro, literal ou simbolicamente.”

Durante a seleção das editoras para investimentos na capa, entram também autores novos, considerados como apostas de sucesso no mercado. E uma boa carta de apresentação visual no acirrado segmento em que se embrenham é imprescindível. “Um projeto gráfico diferenciado pode fazer atentar para um autor que normalmente passaria despercebido. A capa tem também um papel fundamental na captação de novos leitores, aqueles que entram na livraria sem uma pré-definição do que estão procurando”, diz Iaccarino. Marçal Aquino, expoente da onda literária que brotou no país nos anos 1990, teve dois de seus títulos contemplados por gravuras do artista plástico Ulisses Bôscolo de Paula. Cabeça a prêmio e Famílias terrivelmente felizes elucidam o mérito das ilustrações que aparentam ser artesanais, palpáveis. “No caso de Aquino, escolhemos um artista que tivesse afinidade com o tema e fosse jovem e antenado no meio artístico”, conta Elaine Ramos, diretora de arte da Cosac Naify e ganhadora do Prêmio Jabuti na categoria capas em 2008, pelo volume Alexandre Herchcovitch, que integra a Coleção Moda Brasileira.

PRÉ-PRODUÇÃO
Após a definição de quais títulos ou coleções ganharão um projeto gráfico diferenciado, as editoras partem para a escolha do designer mais apto para o trabalho. Se ao corpo editorial foi incumbida boa parte da percepção do que vai constituir a safra a chegar às estantes, a outra metade do caminho fica a cargo do criador. Chega-se, assim, ao estágio da pré-produção. Nele, tão decisivo quanto o acerto do profissional é o diálogo entre os dois lados. “Quando você chama um artista, há sempre o risco de ele não concordar com o que foi imaginado pela editora para aquela capa, o que pode virar uma saia justa”, revela Elaine. “Sabemos o estilo de quem colabora conosco. Fatores de ordem simbólica, como nomes consagrados, também contam. A capa de um grande clássico é, normalmente, honrada com nomes bons que temos à disposição no mercado”, ressalta Furtado, para quem essa preferência por alguém com portfólio mais estabelecido ou que já tenha produzido algo para a editora assegura menos dores de cabeça durante a criação da “encomenda”.

A maioria das editoras contrata capistas autônomos, sendo poucas as que mantêm um setor de criação interno. “Recebemos o briefing com informações gerais da obra e algum fragmento do texto original”, explica a designer Mariana Newlands. A margem de liberdade dada ao designer é larga e respeita seu estilo, mas o universo formulado na narrativa deve ser visualmente traduzido. A fonte na qual o profissional bebe está ligada ao arcabouço de referências culturais e iconográficas da linha pela qual se especializou. Segundo Schwarcz, o designer consolidou seu lugar no mercado ao longo dos anos e elevou o nível de sua produção. “Hoje, a qualidade do trabalho do designer é equivalente ao do assinado por um artista”, afirma o editor, que, em abril, trouxe a escritora Lygia Fagundes Telles para a Companhia das Letras e lançou novo projeto gráfico e capas ilustradas por desenhos em acrílica sobre tela de Beatriz Milhazes para os livros Antes do baile verde, Invenção e memória e As meninas. “Estes títulos repaginados superaram nossas expectativas de venda”, exemplifica, adiantando que, em outubro, chegam às estantes A noite escura, Ciranda de pedra e Seminário dos ratos.

Antes de qualquer rabisco na prancheta – ou na tela do computador –, o designer inicia o trabalho de pesquisa em busca da correspondência gráfica que englobe com mais fidelidade o conteúdo da obra. A interpretação do material colhido se torna, então, o fio condutor no processo que servirá de base para as referências da versão final. Com a introdução de softwares que armazenam praticamente todos os recursos necessários, esse processo ficou mais prático ao longo dos anos. Mas nada que se compare à velha e boa leitura integral do livro. Apesar dos prazos apertados, ninguém melhor do que o próprio autor para descrever o horizonte do terreno a ser moldado, segundo os profissionais. Para uma visão mais interpretativa, as fontes secundárias também são válidas. “Sempre navego na internet, leio resenhas e entrevistas do autor”, conta Evelyn. Dependendo do caso, vale até um “pitaco” do escritor. Para o capista, obra e leitor se relacionam espontaneamente na livraria, num momento particular de interação visual que lança mão dos fundamentos da semiótica. “Não é função da capa entregar a história. As melhores não podem ir além de uma chamada introdutória”, defende Evelyn, adepta dos que as consideram como a primeira pista do que virá adiante.“Ela tem de induzir”, aponta.

Para a diretora de arte Elaine Ramos, a programação visual refinada pode alavancar a obra por conta do sentimento de unicidade que o livro ganha. “Quando o artista faz um trabalho exclusivo, isso torna a capa mais atraente. Há um caráter especial, talvez um melhor casamento entre a imagem e o conteúdo.” Todos os detalhes são importantes para atingir o objetivo.

Isso porque, quando o prazo de exposição nas vitrines termina, as atenções se voltam para a lateral do livro. “Algum tempo depois do lançamento, a capa se torna simplesmente invisível e o que vale é a lombada”, afirma Evelyn.

FIDELIDADE
No trabalho de criação, alguns conceitos devem ser seguidos. Nas coleções, por exemplo, é importante manter uma padronização visual para facilitar a identificação do leitor. “A pessoa que procurar por uma determinada série deve reconhecê-la imediatamente ao bater o olho. Criar uma unidade dá status ao autor”, explica a designer Glenda Rubinstein. Para tanto, o capista tem pela frente a intricada tarefa de equilibrar a disposição dos elementos que serão usados em todos os títulos, como tipografia, cor e linhas, extrair desse caldo algum aspecto particular interessante e aplicá-lo em cada volume.

Na década de 1930, Tomás Santa Rosa, ilustrador, pintor e cenógrafo vanguardista, postulou a ideia de que a capa era fruto não apenas de inspirações artísticas, mas também do cálculo e da frieza que o método pede para criar a uniformidade na coleção. Para Iaccarino, o relacionamento entre técnica e arte traz a sensação de continuidade. “A padronização acaba gerando interesse do público em conhecer mais a obra de determinado autor ou gênero e contribui para atrair colecionadores.” E também fazem mais barulho: “livros com um mesmo projeto gráfico assumem forte presença em pontos de venda”. Poder de atração nas estantes é, sem dúvida, o objetivo final, atingido por Monteiro Lobato há 91 anos! ©

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Texto publicado originalmente na Revista da Cultura, com o título:
Ver para Ler – Editoras investem cada vez mais em capas de livros feitas por artistas e designers importantes para se destacar nas vitrines e atrair a atenção do público.
Por Paulo Scheuer.